CríticaFestival de CinemaFilmesOpinião

Festival de Gramado 2020: análise dos curtas brasileiros

O 48º Festival de Cinema de Gramado conseguiu ampliar seu alcance em 2020 “graças a pandemia”, por mais irônico que isso possa soar. A edição exibida pelo Canal Brasil democratizou as exibições de longas e curtas brasileiros e estrangeiros, dando a condição para cineastas de toda a América Latina de apresentar suas obras. 

E na competição de curtas nacionais, tivemos uma seleção digna dos aplausos que os diretores deveriam ter presenciado no Palácio dos Festivais caso ele estivesse lotado, algo normal em épocas que não existia o distanciamento social. São várias histórias, vários recortes e um DNA verde e amarelo (no bom sentido, é importante explicar nos dias de hoje) que certamente nos orgulha. 

Confira as análises feitas pela Vigília:

4 bilhões de infinitos (MG), de Marco Antonio Pereira (curta brasileiro)

4 bilhões de infinitos
48º Festival de Cinema de Gramado 2020: 4 bilhões de infinitos

Marco Antonio Pereira, o rapaz de Cordisburgo, retorna ao Festival de Cinema de Gramado com seu novo curta, 4 Bilhões de Infinitos. Desta vez, na pequena cidade que já habita o imaginário do Festival de Cinema, dois irmãos vivem muitas dificuldades, mas não perdem sua capacidade de sonhar. Depois de perder o pai, os irmãos vividos por Ana Júlia e Adalberto Gomes vivem com sua mãe em uma casa com energia cortada. Porém, a falta de luz não tira a esperança das crianças, que ficam brincando e imaginando o mundo que os espera quando forem adultos. É uma crítica sensível à realidade de desigualdade social que o Brasil vive, infelizmente. Dificilmente, terminamos de assistir sem os olhos marejados em pensar no que esperar para essas crianças no futuro.

Bruna Haas Pacheco, Editora

Nota 3,2

Receita de caranguejo (SP), de Issis Valenzuela (curta brasileiro)

receita de caranguejo
48º Festival de Cinema de Gramado 2020: Receita de Caranguejo

A delicada relação entre mãe e filha é o ponto central de Receita de Caranguejo, curta de Issis Valenzuela. Após a morte do pai, Lari (Thais Melo) se distancia cada vez da mãe (Preta Ferreira), mas uma viagem para praia e a receita de caranguejo marcam o início da reconexão. A pré-adolescência, o uso de internet, a menstruação, a faltar de diálogo fazer parte da narrativa desse curta que fala muito sobre relação entre mãe e filha. Enquanto a mãe ainda trata a filha como criança, essa menina precisa de suporte para crescer e se entender na idade em que está. O redescobrimento da relação de ambas é muito bonito. Preta Ferreira e Thais Melo tem uma conexão interessantíssima em cena e atuam muito bem, cativando o espectador. É um retrato poético do cotidiano. 

Bruna Haas Pacheco, Editora

Nota 3,8

Inabitável (PE), de Matheus Farias e Enock Carvalho (curta brasileiro)
48º Festival de Cinema de Gramado 2020: Inabitável: esperança no futuro.

A escola de cinema que habita o nordeste do nosso país é muito promissora. Em Inabitável, os diretores Matheus Farias e Enock Carvalho nos propõem uma reflexão em forma de ficção científica, da melhor forma. No filme acompanhamos Marilene em busca de Roberta, sua filha trans que está desaparecida. Com ajuda de amigas da filha e da sua vizinha, a dona de casa busca por todos os lados, e sabe que a condição da filha é um agravante para esperar o pior no País em que vivemos. Na casa de Roberta, ela encontra um objeto não identificado (e a grafia aqui é proposital e que fazer a referência à sigla OVNI de verdade). Esse objeto piscante acompanha a busca por Roberta, até seu desfecho que conecta a ideia de que a comunidade trans em um planeta como o nosso, e em seus próprios corpos, pode ser realmente Inabitável. Ao mesmo tempo, traz esperança.

Robson Francisco Nunes, editor-chefe

Nota 4

Subsolo (RS), de Erica Maradona e Otto Guerra (curta brasileiro)

Subsolo: comédia e metáfora de um ciclo que não acaba.

Festival de Cinema de Gramado sem uma animação envolvendo Otto Guerra (nosso representante nas escolhas do Oscar) não é Festival de Gramado. Em Subsolo, Erica Maradona e Otto trazem o traço característico das obras do cineasta e animador gaúcho, com o também conhecido senso de humor. A história de uma academia de ginástica que fica sobre uma fábrica de salsichas e embutidos traz uma metáfora interessante e compara as esteiras onde as pessoas ficam se esbaforindo, na busca por um padrão corporal, com esteiras de uma indústria, que ao mesmo tempo vem entupir nossas artérias com produtos duvidosos. Sair da academia e pegar uma lanchonete. Quem nunca?

Robson Francisco Nunes, editor-chefe

Nota 3

Atordoado, eu permaneço atento (RJ), de Henrique Amud e Lucas H. Rossi dos Santos (curta brasileiro)

atordoado eu permaneço atento
Importante narrativa sobre a luta pelos direitos humanos de Demi Azevedo

Um importante curta documentário sobre a luta do jornalista Demi Azevedo pelos direitos humanos foi apresentado pelos diretores Henrique Amud e Lucas H. Rossi dos Santos. Chegando no momento ideal em 2020, esse documentário deveria ser assistido pelo maior número de brasileiros possível. Afinal, ele fala sobre a perda de direitos humanos que o país enfrentou durante a ditadura militar e também sobre os direitos humanos que estamos correndo risco de perder da forma em que a política do país está caminhando. “Atordoado, eu permaneço atento” dá voz para quem viu, viveu e sabe os perigos do que aconteceu em nossa história e está tentando mudar o que pode acontecer em nosso futuro. É um filme muito necessário. Assista, se possível!

Bruna Haas Pacheco, Editora

Nota 4,5

Blackout (RJ), de Rossandra Leone (curta brasileiro)

blackout
Será que no futuro algo terá mudado?

Rossandra Leone pinta um Rio de Janeiro futurista, em que nada parece ter mudado. A polícia continua visitando as comunidades cariocas e fazendo batidas em bailes funks de uma forma cruel e violenta. O abuso de autoridade, a violação dos direitos humanos, racismo e machismo continuam presentes. Mas os jovens parecem mobilizados e prontos para fazer essa realidade mudar, usando a opressão da polícia contra ela mesma. O curta seria um bom protótipo de série, porque conta com boas ideias e uma temática necessária. Será que vem mais por aí?

Bruna Haas Pacheco, Editora

Nota 3,7

Wander VI (DF), de Augusto Borges e Nathalya Brum (curta brasileiro)
Wander Vi e a busca pelo seus sonhos

Um curta-documentário sobre um cantor da cidade de Samambaia que, como muito brasileiro, se vira nos 30 para correr atrás do sonho de se tornar um cantor profissional. Vemos ele durante seu trabalho noturno, sua pequena casa/estúdio, onde grava as suas músicas sozinho, suas aulas de dança e como ele pensa em fazer a sua carreira. Um retrato específico de Wander Vi, o nome artístico de Wanderson Vieira, gay, pobre e preto em uma cidade longe demais das capitais. Embora específico, sabemos que ele não está nem um pouco sozinho nessa corrida pelos nossos objetivos de vida.

Robson Francisco Nunes, editor-chefe

Nota 3,5

Extratos (SP), de Sinai Sganzerla (curta brasileiro)

Extratos: cores e experimentalismo nos anos de chumbo

De forma mais visual do que propriamente explicativa, Sinai Sganzerla apresenta um formato de documentário mais experimental, com imagens da década de 70 que mostra recortes de cidades como Rio de Janeiro, Salvador, Londres, Marrakech, Rabat e parte do deserto do Saara. Todas as imagens foram feitas por Helena Ignez e Rogério Sganzerla durante seus exílios, na época da ditadura no Brasil. Sem apresentar dados ou muitas informações, vamos viajando naquela época, com cores de época que retratam que mesmo em situações ruins, ainda podemos extrair coisas boas.

Robson Francisco Nunes, editor-chefe

Nota 3

Remoinho (PB), de Tiago A. Neves (curta brasileiro)
Remoinho: Maria retorna à casa de sua mãe. Ela está decidida sair do remoinho que a fez voltar.

O curta traz uma mulher que retorna à casa da mãe, junto do filho, após muitos anos de ausência. Tudo nos indica que a protagonista passou por um divórcio ou separação, pois o seu silêncio constante e sua postura indicam que há muito a ser dito, mas que é preciso tempo para expressar seus sentimentos em palavras. “Remoinho” fala sobre retornos, os ciclos da vida e a forma como as coisas tendem a se repetir. Apesar dessa temática, muito mais poderia ter sido dito, mesmo sem palavras.

Bruna Monteiro

Nota 2,5

Você tem olhos tristes (SP), de Diogo Leite (curta brasileiro)
Você tem olhos tristes: um bikeboy que enfrenta dilemas e preconceitos

Antes mesmo de iniciar, o documentário já mostrou a sua potência. O diretor, Diogo Leite, em depoimento para o Festival, falou sobre como fazer cinema, em um país como o Brasil, é um ato de resistência. Já a nossa história acompanha um entregador de aplicativos de comida, que, junto da sua bicicleta, enfrenta as mais adversas situações, lidando com dificuldades, grosserias e racismo. Um retrato dolorido e triste sobre os dias atuais, com aplicativos e uma vida hiperconectada. Aplicativos como “ifood” e “tinder” e a tecnologia das bikes “yellow” nos lembram o quanto somos dependentes de tecnologia, enquanto que o nosso protagonista encerra nos dando uma lição sobre força e princípios.

Bruna Monteiro

Nota 4

Dominique (RJ), de Tatiana Issa e Guto Barra (curta brasileiro)

Dominique: amor que não vê preconceito

Mais um recorte, de certa forma hipócrita, da sociedade brasileira. Brasil, o lugar onde as pessoas não podem ser o que querem e julga mal quem é “diferente”. De forma bem didática, acompanhamos Dominique, uma trans que sai de uma ilha do Rio Amazonas, criada pela mãe, que embora tenha tido seu embate com o então filho, mas percebe que sempre vai amá-lo e quer vê-lo feliz da forma que ele escolheu ser. O exemplo de Dominique é seguido por mais dois irmãos, que ganham o mundo e se revelam trans também. Nos relatos de pessoas simples, percebemos que as dificuldades podem ser criadas por pessoas da cidade grande, ditas civilizadas. Apesar dos relatos de preconceito, prostituição e brutalidade, vemos em Dominique um recorte de que o  amor é maior que qualquer diferença, por menor empecilho que ela seja. No final das contas, somos todos iguais.

Robson Francisco Nunes, editor-chefe

Nota 4,3

Joãosinho da Goméa – O Rei do Candomblé (RJ), de Janaina Oliveira ReFem e Rodrigo Dutra (curta brasileiro)

Joãosinho da Goméa – O Rei do Candomblé chegou na Rainha Elizabeth II

Mais um recorte da diversidade que temos no Brasil. Diversidade de cores, opiniões e religião. Os diretores Janaina Oliveira ReFem e Rodrigo Dutra resumem em 14 minutos a história de Joãosinho da Goméa, o Rei do Candomblé. A narrativa é contada pelo seu personagem principal, mesclando recortes históricos, jornais, músicas e performances provocadoras. O poder e o alcance de Joãosinho chegou até a Rainha Elizabeth II. Uma amostra colorida e dinâmica de uma parte das religiões de matriz africanas que estão por todas as partes.

Robson Francisco Nunes, editor-chefe

Nota: 3,7

Trincheira (AL), de Paulo Silver (curta brasileiro)

Um mundo fantástico feito de lixo.

Trincheira é ao mesmo tempo divertido e impactante. Embora ele mostre um recorte ficcional de uma criança vivendo em um lixão ao lado de um condomínio de luxo (que existe de verdade), vemos e sabemos que nosso país tem um exemplo desses em praticamente 100% das grandes e médias cidades. Apesar de abordar o tema do lixo, toda a estética é muito limpa, fazendo com que o protagonista realmente se divirta com o tanto de sucata que o cerca. Sua criatividade vai costurando as diferenças sociais entre ricos e pobres, culminando em um final interessantíssimo que mescla as cores, videogame retrô e aquela ideia de que a ficção e o mundo de faz de contas é realmente um refúgio da realidade que pode ser triste.

Robson Francisco Nunes, editor-chefe

Nota 4,5

O Barco e o rio (AM), de Bernardo Ale Abinader (curta brasileiro)

O Barco e o Rio: duas irmãs, dois universos.

Mais um curta que enriqueceu a mostra competitiva, e que o diretor já planeja que se transforme em um longa metragem. Torcemos para que ele realmente aconteça. O Barco e o Rio apresenta justamente o que o título descreve, mas dentro do barco, no porto de Manaus, vemos a relação de duas irmãs e como lidar com a forma em que levam a vida, tendo cada uma um ponto de vista bem diferente da outra. Em pouco espaço (um pequeno barco, afinal), a narrativa consegue ser rica o suficiente para contar coisas que não são ditas ou explanadas. Bernardo Ale Abinader usa o bordão cinematográfico “show don’t tell” e consegue como poucos demonstrar o quanto o audiovisual pode contar boas histórias, e histórias bem brasileiras, cheias de camadas. Tomara que venha o longa!

Robson Francisco Nunes, editor-chefe

Nota 4,7

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *