Crítica

“A Viagem de Pedro” e a desconstrução de um “herói”

De Laís Bodanzky, responsável por “Como Nossos Pais”, “A Viagem de Pedro”, produção brasileira e portuguesa, é protagonizada (e produzida) por Cauã Reymond. O filme teve pré-estreia especial no 50º Festival de Cinema de Gramado, e estreia oficialmente nos cinemas em 1º de setembro. Ao final da exibição, ele tirou aplausos do público e surpreendeu ao dar uma nova perspectiva sobre o ‘herói nacional’ Dom Pedro I e ao contar um filme de época de forma dinâmica e com muitas mensagens.

“A Viagem de Pedro” se passa em 1831, durante a travessia de Pedro e sua segunda esposa, Amélia (Victoria Guerra), pelo Atlântico, em uma fragata inglesa rumo à Europa, a caminho de enfrentar o seu irmão pelo trono português.

Doente fisicamente e, basicamente, amaldiçoado emocionalmente, o filme traz, além de uma jornada mar adentro, a jornada pessoal e emocional do ex-imperador do Brasil, que precisa lidar com os fantasmas do passado e com o fardo de seus erros.

O mar realmente é um destaque no filme. O azul do oceano encontrando o azul do céu nos transportam para um outro lugar, em um outro momento. A belíssima fotografia do filme também está presente em momentos cruciais dentro da fragata, que nos levam à sensação de também estarmos todos dentro de um grande barco.

E enquanto a embarcação segue e a história avança, vamos acompanhando o espiral de loucuras e incertezas de um homem que pensava ser, até agora, perfeito. Sim, é a história de um homem branco que passa a lidar com as consequências de seus atos, com o fantasma de sua ex-mulher e com o peso de suas más decisões do passado (e do presente).

Como já escrito nos livros de História, Dom Pedro I era um grande galanteador, homem de muitas mulheres, com muitos filhos e que, apesar de tudo isso, era apaixonado por sua esposa, Leopoldina. 

No início do filme, temos Pedro e Leopoldina como um lindo casal, harmonioso e apaixonado. No entanto, à medida que a trama se desenvolve, vamos percebendo a forma como as coisas realmente aconteciam, com Pedro chamando a esposa de louca, agredindo-a, trazendo uma amante para morar em sua casa e a desrespeitando de diversas formas. Precursor dos relacionamentos tóxicos? Acho que sim.

Cauã Reymond, protagonista e produtor de "A Viagem de Pedro"
Cauã Reymond, protagonista e produtor de “A Viagem de Pedro”

Aliás, esse foi um dos pontos principais trazido pela diretora Laís Bodanzky durante o discurso prévio à exibição do filme: a questão da masculinidade tóxica. Além disso, o protagonismo negro e a importância das vidas negras também foram prioridades durante o desenvolvimento do filme, a fim de passar uma mensagem sobre os impactos de ações de 200 anos atrás, que ainda reverberam, por meio do racismo velado (e, por vezes, nem tão velado assim) até os dias de hoje. 

Essa representação aparece no filme por meio dos escravos de Dom Pedro I. Durante as noites, vagando pelo barco, Pedro observa os desabafos e as diversões do grupo, que ficam alocados juntos, longe de sua cabine. Um momento chave acontece quando Pedro pede para Tigre, um dos escravos, parar de contar sua triste história de vida, para contar algo engraçado.

Em momentos como esse, em que não entrarei em muitos spoilers, os paralelos entre passado e presente se tornam quase imperceptíveis, mostrando que sim, apesar de tudo em que já avançamos, ainda temos muito o que mudar como sociedade.

A atuação de Cauã Reymond, que também produziu o longa e acompanhou os 9 anos que foram precisos para que o filme realmente saísse do papel, merece um destaque aqui também. Tal como um imperador precisaria fazer, Reymond falou português, inglês, espanhol e até arranhou um francês. Mesmo com o seu personagem não sendo digno de pena, a sua interpretação é capaz de fazer com que víssemos Dom Pedro dessa forma, como um homem que aqui não foi retratado como herói.

De forma geral, “A Viagem de Pedro” entrega bem seus objetivos, nos transporta para dentro do barco, compartilhando com o telespectador as agonias dos personagens em alto mar, e surpreende por trazer esses comparativos entre passado e presente, com temáticas que, infelizmente, ainda são pauta em nosso dia a dia.

Veredito da Vigilia

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