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Uma Mulher Fantástica | Crítica

O chileno Una Mujer Fantastica, dirigido e roteirizado por Sebastián Lelio, chega aos cinemas brasileiros na próxima quinta (07/09), e a Vigília já assistiu.

Crítica por Maytê Ramos Pires

Ao final, o filme entrega de fato o que promete em seu título e nos leva à imersão de viver junto alguns dias (ou umas semanas) da difícil trajetória a qual Marina (Daniela Vega) é impelida a experienciar. Ela que é verdadeiramente fantástica. Ela é forte, intensa, batalhadora e persistente, tudo o que uma mulher transexual necessariamente precisa ser para sobreviver aos dias de hoje, de tanto preconceito e desinformação. Ao passo que avançamos no sentido de visibilidade e representatividade, tanto de expressão de pessoas que se diferenciam do padrão aceito de normalidade na sociedade patriarcal e hetero(cis)normativa quanto de espaço de tela para contar âmbitos dessas realidades mais difíceis de se conquistar, também retrocedemos ao dar cada vez mais espaço para discursos de ódio e demonstrações de desinteresse em adquirir conhecimento sobre, reforçando discriminação e intolerância.

Toda a questão mais geral das dificuldades que uma (ou um, mas acredito que mais no caso das mulheres devido ao machismo histórico) transexual vive em seu cotidiano está expressa neste longa, mas a sinopse que recebemos do filme não condiz de todo com a história que ele conta, não vemos o que diz que veremos – e que bom, porque vemos muito mais! Por exemplo, na sinopse oficial é dito que o verdadeiro sonho de Marina (Daniela Vega) é se tornar uma cantora aclamada e que por isso ela canta na noite de sua cidade para galgar os passos até seu objetivo sonhado, mas não vemos isso retratado no filme; não vemos esse sonho expresso, vemos isso entremeado à vida dela e o ser cantora como parte de seu cotidiano e se concretizando em sua vida, mas não necessariamente o que a motiva a seguir em frente.

Sendo assim, vamos ao conflito expresso na tela, apresentando outra sinopse, talvez mais adequada ao que de fato o enredo constrói para que você, leitor, tenha ideia do que verá em tela quando chegar aos cinemas por aí: Marina (Daniela Vega) é uma mulher transexual que tem uma relação estável com Orlando (Francisco Reyes). De dia ela trabalha como garçonete e à noite atua como cantora. No dia de seu aniversário, seu companheiro morre e, a partir daí, ela começa um confronto com a família dele, que não aceitava os dois como casal, mesmo a relação já tendo cerca de um ano e os dois morando juntos. Eles tinham uma cachorra chamada Diabla, e ela também é incluída no conflito. O filme mostra o sofrimento que uma mulher transexual passa em seu cotidiano, em diversas ocasiões e locais na multiplicidade da vida e no desamparo que é caminhar sozinha pelas ruas. Mostra também a força de vontade que ela precisa ter para encarar as adversidades para se estabilizar como mulher, tendo que lidar com o preconceito também de outras mulheres que não a aceitam nem compreendem – apesar de em alguns níveis sofrerem de preconceitos semelhantes, mas que no caso das trans (em relação às cis) é potencializado pela incompreensão generalizada de lugar social e expressão identitária.

O filme se passa em Santiago, no Chile, e a cidade é personagem na narrativa, sendo mostrada naturalmente. Aliás, as cores de Uma Mulher Fantástica são lindas, e em ambientes internos temos um colorido que conversa com as cenas de forma eficaz. Destaca-se os momentos na sauna – em que azul e vermelho brincam com as sensações e alternância da tensão – e nas duas sequências de cenas em boates – a primeira numa dança a dois em que a luz avermelhada alterna de maneira sutil; e a segunda numa desintoxicação que passa por dança convencional, sexo e libertação por meio de uma coreografia de glamour e constituição de uma “diva”, com direito a brilhos e sensação de ser a estrela do momento, o que é tudo realizado lindamente.

Apesar de tratar de um tema tão caro e com um olhar importante sobre o ser transexual, o filme tem certas incoerências de continuidade em algumas cenas e pesadas sequências que não fazem sentido. Em pelo menos três momentos o filme pecou em construir motivos para ações da Marina (Daniela Vega), e isto se torna muito evidente ao espectador pois quebram a narrativa nessas inconsistências que você fica: “por que ela fez isso?”, “não tem porquê dessa ação, será que é para dar dinamicidade ou qual intenção, já que nem bonito foi?”, entre outras reações. Mas, e frequentemente tem o “mas”, podemos relevar os furos de roteiro visto que o filme é tocante e maravilhoso na história que conta; mais atual impossível, e que poderia ser vivido no contexto brasileiro, visto que o nosso é o país que mais mata transexuais e travestis no mundo.

Vemos uma direção assinada com cuidado, com uma obra estrelada magistralmente por Daniela Vega, que é uma atriz ótima, que de fato toma conta da tela e preenche o filme impetuosamente. Uma curiosidade é que a atriz é de fato uma mulher trans chilena, o que leva a crer que há muito dela no personagem e o que pode ter levado a esse furor/vigor/ímpeto que vimos no filme. Ademais, ela ainda é cantora de ópera e é a voz dela que ouvimos quando a personagem interpreta canções ao longo do filme, sendo uma artista completa. Graças a ela e à relevância do tema, Uma Mulher Fantástica é um filme que não se pode deixar de ver. Está entre as maiores estreias da semana, essencial para quem quer ter alguma noção (não tão agressiva, nem violenta, mas com vivacidade/arrebatamento) de como pode ser complicado/hostil querer ser você mesma e expressar o que se sente também na construção de uma imagem pessoal e do que contamos sem precisar falar, apenas em como nos mostramos socialmente e da gravidade que pode tomar a escolha de uma determinada vestimenta em que nos sentimos confortáveis.

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