Live-action de Cowboy Bebop é um fan service sonolento
Se existe uma expressão para classificar a tentativa da Netflix em adaptar o anime de Cowboy Bebop para live-action ela é “bem intensionada”. Isso porque o canal procurou agradar a todos os fãs quando, no dia 19 de novembro, estreou a nova atração, construindo um universo praticamente idêntico ao visto na obra criada por Shinichiro Watanabe, colocando os figurinos iguaizinhos nos atores, usando a mesma trilha da série original e até mesmo retratando fielmente alguns poucos momentos icônicos vistos lá em 1998.
Mas então, por que a opinião do público em geral é negativa? Bom, talvez seja pelo modo como o anime foi adaptado. A estrutura da série dos anos 90 era fragmentada, dando a cada um dos protagonistas uma jornada própria, deixando cada um ser o ator principal da sua história, de maneira bem episódica. Agora, em 2021, a Netflix até deu esse “espaço” para cada um, mas tentaram criar uma narrativa única, fazendo com que tivéssemos um vilão central e uma narrativa mais coesa, por assim dizer. A intenção foi boa, porém, mal executada.
Bom, para quem não conhece a trama de Cowboy Bebop, estamos no ano de 2071 e os humanos vão e vem a toda hora de um planeta para o outro. É comum vermos alguém dizendo que precisa ir para Vênus ou que nasceu em Marte. Nesse contexto, o universo está meio sucateado, com a tecnologia não sendo muito diferente do que vemos atualmente, com a exceção do uso de naves para o deslocamento de um local para o outro e alguns aparelhos celulares bem analógicos. É nesse cenário que temos os “cowboys”, que são caçadores de recompensas, que a todo momento estão em busca dos criminosos mais procurados da galáxia.
É aqui que conhecemos os protagonistas da série, que coabitam a nave Bebop. Spike Spiegel (John Cho) tem um passado misterioso ligado ao Sindicato, uma espécie de máfia. Jet Black (Mustafa Shakir) é um ex-policial e o dono da nave, além de mecânico da turma. Faye Valentine (Daniella Pineda) entra para a equipe por acaso e sofre de amnésia, depois de passar décadas criogenada (congelada). Completa o time o corgi (a raça de cães) Ein, o mascote do grupo.
Cowboy Bebop procura ser coesa e dinâmica em alguns aspectos, como o fato de vários plot-twists do anime já estarem desvendados, dando a entender que o live-action presume que todos já assistiram a animação e não ficariam impactados com o fato de Gren (Mason Alexander Park) ser transgênero ou de que Julia (Elena Satine), a eterna paixão de Spike, estar viva. Nas adaptações orientais, os fãs anseiam por ver as mesmas cenas vistas no anime, mas agora com atores reais. Talvez a Netflix acreditou que isso não seria uma boa ideia. Mesmo assim, temos algumas (poucas) cenas icônicas, como citei nos parágrafos anteriores.
Outra tentativa da série, que não foi muito bem executada, foi o fato de Vicious (Alex Hassell), o antigo parceiro de Spike no Sindicato e atual mandachuva da máfia – e também namorado de Julia – ser o principal vilão da história, com todo o mal que acontece no universo passando por suas mãos. No anime temos um vislumbre disso, mas todas as suas intervenções estavam atreladas a Spiegel, não reverberando no resto da história. Claro, se fosse uma adaptação japonesa, provavelmente veríamos ele com um abutre nos ombros, como acontece na animação. Ainda bem que a Netflix excluiu isso da retratação do personagem (mesmo assim aqui ele está tão caricato que parece estar em uma peça de teatro).
Outra mudança – talvez uma das mais significativas pra mim – foi a tentativa de mudar a personalidade de alguns personagens e também de deixar Cowboy Bebop mais “engraçada” do que realmente a série se propõe a ser. As interações entre Faye e Spike não arrancam nenhuma risada do espectador e o fato de transformar Jet em um pai separado, que não conta com a guarda da filha, fazendo com que ele sempre tenha que dar um jeito de estar perto dela ou participando de momentos importantes, transformou o personagem em um alívio cômico constrangedor. No anime, o máximo que temos é ele protegendo a filha de um amigo, mas esse “instinto paterno” não combina nem um pouco com a personalidade dele. Talvez tenha sido uma tentativa de dar mais camadas ao membro mais velho do grupo. Não colou.
Temos outra personagem que também foi bastante modificada (com a tentativa de justificar as suas atitudes no final do live-action). No anime, Julia era uma mulher empoderada, todos babavam por ela, deixando Spike e Vicious brigarem por sua atenção, mesmo não sabendo se a mesma estava viva ou não. E quando Julia dá as caras na série animada, vemos alguém muito letal, deixando até mesmo Faye Valentine impressionada. No live-action, a garota é totalmente submissa a um Vicious completamente perturbado, não chegando nem aos pés da Julia original.
Mesmo assim, a Netflix apostou alto com a adaptação de Cowboy Bebop. Tanto que deixou algumas pontas soltas e personagens para uma segunda temporada. Quem sabe não tenhamos uma melhora entre o primeiro e o segundo ano da série. Sem se preocupar com as coisas que já foram bem-sucedidas, como cenários, figurino (tirando a barba do Jet), trilha-sonora e escolha de elenco, a Netflix poderá focar em construir uma narrativa menos arrastada, com atuações menos caricatas e sem querer condensar todas as narrativas avulsas em uma coisa só. Fica a dica.