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O Mecanismo: a nova produção brasileira da Netflix | Crítica

Escrever sobre a nova produção brasileira da Netflix, O Mecanismo, é uma tarefa tão inglória quanto assisti-la. Antes que você ache que esqueci de preencher o campo das estrelas, saiba que dei meia estrela mesmo para essa série. E antes que você me xingue no campo dos comentários, peço que leia o texto e os argumentos até o final.

Então, vamos lá. O Mecanismo, como disse antes, é uma produção brasileira, com a assinatura de José Padilha e roteiro de Elena Soárez. Inspirada no livro “Lava Jato – O Juiz Sérgio Moro e os bastidores da Operação que Abalou o Brasil”, de Vladmir Netto, a série mostra a Operação Lava Jato pela visão da Polícia Federal. E já podemos adiantar: O Mecanismo é maquiada de série “apartidária”, mas a propaganda política é clara.

José Padilha faz mais do mesmo. Quem assistiu Tropa de Elite vai reconhecer todas as nuances da série. Selton Mello, o delegado da “Polícia Federativa” Marco Ruffo, começa a série narrando fatos, falando clichês e palavrões, assim como o Capitão Nascimento, de Wagner Moura (que, misteriosamente, recusou o papel para viver o protagonista). Os planos abertos sendo alternados para planos fechados, a fotografia, a trilha sonora. Inclusive, desta vez temos a música Bichos Escrotos, do Titãs como tema e uma cena piegas de uma prisão do vilão ao som de música clássica (com um quê de Wilson Fisk). Temos também a referência ao filme brasileiro O Cheiro do Ralo. Tudo é uma grande repetição. O policial continua sendo um fodido (mas falaremos mais disso depois), que tenta lutar contra um sistema falido. Familiar, não é mesmo?

Como não podia ser diferente, temos os policiais bonzinhos contra os bandidos malvados. E, dessa vez, temos uma grande estrela: o Juiz Paulo Rigo (Otto Jr.), que vive o famoso (sic) Sérgio Moro. Sim, repetimos a mesma fórmula dos filmes Polícia Federal e Real – O Plano por trás da história. Rigo aparece acima do bem e do mal. Vai para o trabalho de bicicleta, é um ótimo marido, coloca cortina no banheiro, tem orgulho de dar um autógrafo e lê uma História em Quadrinhos chamada de “O Vigilante Sombrio”. Sugestivo, não? Sérgio Moro, ou nesse caso, Rigo, é um personagem vaidoso, mas absurdamente enaltecido. Mas até que ponto devemos ter um juiz e uma operação da Polícia virando celebridade para a população brasileira? Em um artigo escrito pela ex-ministra da Justiça da República Federal da Alemanha, Herta Däubler-Gmelin, publicado no site do El País, lemos o seguinte trecho: “Sérgio Moro, juiz de primeiro grau em Curitiba responsável pelos casos de corrupção na empresa paraestatal Petrobras, há muito tempo também já dá margem às suspeitas de que ele seja parte dessa campanha política. Manifestou-se publicamente contra Lula em várias ocasiões, o que em um Estado de Direito deveria, sem dúvidas, acarretar na declaração de sua suspeição. Mas não é o que ocorre no Brasil, onde ele foi sempre respaldado e jamais recebeu qualquer penalidade por suas condutas”. Leia o artigo completo aqui. A jornalista e escritora Eliane Brum, na época da estreia do filme Polícia Federal, escreveu um artigo que se encaixa perfeitamente com a situação de O Mecanismo, com a seguinte passagem: “Fazer cinema é um ato também político – e não haveria como não ser, no meu modo de ver. O que me parece inaceitável é alguém afirmar que seu filme é “apolítico”, o que é uma forma de fazer política negando a própria política. E isso é desonesto”. Leia o artigo completo aqui

Vemos uma preocupação excessiva em ser uma série isenta. E quando alguém tenta tanto provar algo, já percebemos que alguma coisa está errada. Ruffo, personagem de Selton Mello bate o tempo todo na tecla de que a corrupção é um mecanismo (olha aí). A série quer deixar claro que a corrupção começa no grande figurão da empreiteira até o pessoal da empresa de água. São feitas menções a Aécio Neves e Michel Temer, com seus nomes trocados. Porém, o foco mesmo é em Dilma e Lula. Ou, no caso, Janete (Sura Berditchevsky) e João Higino (Arthur Kohl). Aí vemos vários episódios de má fé. Frases de diálogos famosos de outros dois políticos são atribuídos à Higino (Lula, no caso) e é dele que parte a reação de “Estancar a sangria”. Outra cena que não tem nenhum valor à série e parece que apenas está ali para confirmar nossas suspeitas é quando Higino está visitando um apartamento e responde para o corretor “Sabe que não sou eu que decido isso, né?”, fazendo referência à Marisa e ao Triplex. Clássicas frases como “Nunca antes na história desse país” são faladas por Ruffo em tom de deboche. Além disso, tem uma cena em que mostra Higino criticando Rigo. Não é curioso?

Apesar de não estar em cena, o selo Globo Filmes podia ser colocado. Praticamente todos os atores têm alguma relação com a famosa empresa. E algumas cenas poderiam ter vindo das caricatas novelas das Sete, como uma comemoração ridícula na prisão. Porém, Enrique Diaz vai bem como Ibrahim, o personagem do doleiro Alberto Youssef, a melhor atuação da série. Diaz faz um vilão que quase nos faz torcer por ele.

Falamos de vários aspectos e ainda não dissecamos sobre os protagonistas, Selton Mello e Caroline Abras, que vive a delegada Verena. Os dois narradores da série, policiais que tem um único objetivo: prender. Ruffo, o personagem de Mello, é um policial totalmente transtornado. Quando irritado, se torna absurdamente violento. Além disso, ele repete sistematicamente a frase “Vamos comigo que a gente vai desfazer essa merda”, para todas as pessoas que ele investiga por conta e interroga sem mandato. E reclama, o tempo todo, da remuneração que recebe. Segundo ele, em vinte anos na Polícia Federal, tudo que conseguiu comprar foi um carro usado para sua esposa e um sítio no interior. Porém, o cálculo não fecha. Um delegado da Polícia Federal recebe cerca de R$ 18 mil reais por mês. Uma vitimização desnecessária.

Verena é uma personagem forte no meio de todo o machismo da “Polícia Federativa”

Verena é um caso à parte. Seguidora fiel de Ruffo, é uma mulher forte, obstinada, mas sozinha. Segue os ensinamentos de Ruffo, tanto que é totalmente contra a corrupção, mas vive fazendo ações sem mandato. É a delegada que profere a seguinte frase: “Nunca gostei do presidente, nunca comprei o candidato a vice e sempre desconfiei da presidenta”. Não é um tanto quanto política? Adoramos ver mulheres em papel de destaque, à frente de operações e vemos como ela sofre sendo uma mulher num universo absurdamente machista. Por outro lado, ela tem romances mal resolvidos que são totalmente desnecessários. Mas as mulheres não foram bem representadas em O Mecanismo.

Sexualizadas, expostas e histéricas. Assim que as mulheres aparecem nesta série. Janete é a presidenta manipulada, a filha do presidente da Petrobrasil só sabe gritar e chorar em momentos de pânico e em TODAS as cenas de sexo vemos apenas nudez feminina. Peitos e troncos desnudos, tanto nas boates quanto nas casas. Sem a mínima necessidade. Outra polêmica envolvendo a série se deu com Marina Silva. Marina publicou um texto e fez um Tweet (abaixo) que ligava Marielle à série O Mecanismo, dizendo que era contra isso que a vereadora assassinada lutava. Distorção e aproveitamento da imagem de alguém que lutou tanto por tantos direitos para benefício próprio? Vemos por aqui.

Marina Silva apagou o Tweet na sequência.

Resumindo, O Mecanismo é um grande desserviço à população brasileira. Tanto pela maquiagem dos fatos e pela propaganda política mascarada quanto pela disseminação de uma história mal contada para cento e quarenta países pelo mundo. A Vigília NÃO indica essa série.

 

5 thoughts on “O Mecanismo: a nova produção brasileira da Netflix | Crítica

  • crítica partidária para uma série apartidária.

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  • Lucas Schardong

    Gostei da crítica. Bem embasada e sem sensacionalismo. Só uma correção: a jornalista se chama Eliane Brum!

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    • Bruna Haas Pacheco

      Oi, Lucas! Obrigada pelo toque, já alteramos! 😉

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  • No sentido que você pretendia usar, a palavra correta é mandado.
    O comentário de Marina não implica a conclusão de que ela correspondeu sua opinão das consequências de crimes financeiros com as manifestações políticas da vereadora assassinada (quanto ao tweet; não li o texto). Quanto ao uso da imagem/fotografia da vereadora associada a “sangue no mecanismo”, é compreensível a crítica. Entretanto, o uso ambíguo no seu texto de “imagem”, que podia tanto referir a evocação do nome e acontecimento para tratar de um tema quanto a fotografia concreta, distorce desnecessariamente a fundamentação desse ponto.
    O propósito da filha do presidente ser melosa, ingênua e tapada, isso serve mais para ilustrar as pessoas que por ignorância ou passividade são beneficiadas pelas condutas criminosas dos familiares, do que as mulheres, mesmo que possa ter esse efeito em mentes mais convenientes à uma visão estereotipada das mulheres. De fato, existem mulheres que “só sabem gritar e chorar”, que são “manipuladas”, etc, e desse ponto de vista a série foi equilibrada na demonstração de que não é uma natureza inerente das mulheres, mas um condicionamento cultural natural recorrente. A sua análise não demonstra consideração de possíveis contrapontos evidentes na defesa de sua posição.

    “Apesar de não estar em cena, o selo Globo Filmes podia ser colocado. Praticamente todos os atores têm alguma relação com a famosa empresa.”
    O que conta é quem financia, eu acho. O roteiro que recebe aprovação é que pode colocar todos os fatores políticos citados no seu texto.

    O seu texto não consegue desvencilhar o sentimento de rejeição pela série de uma exploração prudente dos pontos negativos e falhas dela.

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  • Victor Carvalho

    Jornalismo imparcial, a gente NÃO vê por aqui… Rsrs

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